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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A história secreta da renúncia de Bento XVI

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do
banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita
renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de
complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de
tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem
terrível de seu processo de decomposição moral. O artigo é de Eduardo
Febbro, direto de Paris.

Eduardo Febbro

Paris - Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa
Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de
sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o
que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne),
Philippe Portier, chama "uma continuidade pesada" de seu predecessor,
João Paulo II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de
cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído:
corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo
massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de
dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato
sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava
delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter
suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.

Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato
de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta.
Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos
padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas
vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um
continuador da obra de João Paulo II: "desde 1981 seguiu o reino de
seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a
condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o
Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os
temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a
quatro mãos com Wojtyla". Esses dois textos citados pelo especialista
francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre
as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.

O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde
2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo
de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz "dar testemunho da
verdade". Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois
do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do
papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como
faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos.
Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da
Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da
cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da
igreja. "Minha ideia é trazer luz", disse Burke ao assumir o posto.
Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.

A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo
mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi
uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo
misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio
Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em
seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e
a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de
limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com
anjos não é fácil de redesenhar.

Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou.
Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os
tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor
Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das
primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as
sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e
ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar
no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla,
apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se
empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a
respeito que o papa "se deixou engolir pela opacidade que se instalou
sob seu reinado". E a primeira delas não é doutrinária, mas sim
financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das
querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as
contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira
deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a
crise atual.

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti
Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de
Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis,
representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi
participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in
veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica
exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o
sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as
turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um
labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais
conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana
emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul
Marcinkus, o chamado "banqueiro de Deus", presidente do IOR e máximo
responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano
para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois
devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro "não
contabilizado" do IOR para as contas do sindicato polonês
Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus
terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco
buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários
cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na
ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi,
presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa
trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja
maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio
Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.

Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só
permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma
fulminante em 2012 por supostas "irregularidades" em sua gestão.
Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do
Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado
por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na
verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra
entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou
a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo:
contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de "políticos,
intermediários, construtores e altos funcionários do Estado". Até
Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu
dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.

Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz
que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por
conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado,
Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela
comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua
destituição veio acompanhada pela difusão de um "documento" que o
vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do
banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita
renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de
complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de
tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem
terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente
do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de
privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não
é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do
sistema.


Tradução: Katarina Peixoto


Fotos: TV Vaticano

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